quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O anjo da guarda


Papai estava na cozinha assistindo televisão. Eu podia vê-lo por meio da fresta em que havia na porta de meu quarto. Era sempre assim. Mamãe vinha até mim por volta das nove da noite, e jamais passava disso, dava-me um beijo na testa e dizia: “Deus te abençoe, meu menino”. Ela sequer imaginava a dor que eu sentia quando me deixava só. Demorei muito tempo para convencê-la daquela fresta, aquela mesma de que falei a pouco, por onde tentava descobrir o que papai assistia.

Pois bem, naquela noite, lembro-me do frio que fazia e do vento que batia na janela do meu quarto. Sabe aquele barulho perturbador que não deixa ninguém pregar os olhos por um instante? Era assim, horrível. Como poderia eu escutar o que o homem da TV estava falando para papai com aquele estrondo lá fora?

Num instante, porém, pude ver mamãe se aproximando do sofá onde papai estava sentado. Ela estava chorando e carregava uma mala vermelha em sua mão esquerda. Papai nem ao menos a olhou. Ele continuou vidrado naquele homem que não parava de falar. Mamãe desapareceu de minha vista. A porta bateu tão fortemente que fez papai baixar a cabeça e fitar o olhar na direção de meu quarto. Alguns segundos depois, cá do meu lado estava ele.

– Pedro. Disse-me papai. – Não precisa ficar preocupado, estarei sempre aqui do seu lado.

Eu era tão jovem e tão inocente, não tinha sequer chance de descobrir o que tudo aquilo significava. Papai tentou me explicar:

– Mamãe precisou partir, ela fará uma longa viagem. Mas, lembre-se filho, todos nós temos a proteção do nosso anjinho da guarda. Ele está ao nosso lado sempre, em qualquer momento, seja ele de dificuldade ou de alegria. Mamãe seguiu seu caminho e eu permanecerei ao seu lado sempre que puder...

– Papai, papai.

– O que é meu filho? 

Olhando por entre os vidros da janela de meu quarto, eu disse:

– O anjinho da guarda da mamãe é aquele senhor de sobretudo preto que está esperando ela do outro lado da rua?   

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Teste de resistência


Já eram dez da manhã e a janela do quarto permanecia fechada. Sob a escrivaninha, algumas cartas revelavam a dor dos últimos dias. O telefone tocou, criou-se a expectativa, mas não era ninguém especial. Não que não fosse especial realmente, mas não era quem se esperava que fosse. Podia ter aberto a veneziana, iluminaria o ambiente, traria vida àquele recanto sombrio, e olha que o dia estava lindo lá fora.

O livro foi a companhia de boa parte daquela manhã. A leitura é sempre tão envolvente que passaria horas e até mesmo noites inteiras mergulhada por entre páginas diversas. Romances são os meus preferidos. Não que não leia contos, biografias e até mesmo algo científico.

Tinha medo do aconteceria. Sentiria falta do jeito estranho e envergonhado, da pessoa fechada que era, do medo de ser incompreendida, do amor, das amizades.

A dorzinha foi surgindo e eu, um tanto que guiada pelo espírito de outros, fui deixando a escuridão tomar conta de minha alma para não sofrer tanto. No fim, sabia que tudo iria passar e que aquele era somente mais um teste de resistência.